Uma tradição ininterrupta II
Em 1564, Pio IV († 1565) nomeou uma comissão para uniformização da missa e das rubricas. O seu sucessor, Pio V († 1572), a alargou e este, depois de ter publicado o Breviário em 1568, se empenhou na publicação do Missal. Não se criou um novo Missal, apenas retocou-se o de 1474, fazendo com que os textos estivessem de acordo com o Breviário editado anteriormente, coisa nunca acontecida antes. Ao Missal precediam “As rubricas gerais do Missal” e as observações sobre “O rito a ser observado na celebração da missa”. O Missal foi promulgado por meio da constituição apostólica Quo primum tempore (Desde os primeiros tempos), de 14 de julho de 1570. A constituição fala da unidade do Breviário e do Missal para que seja, na única Igreja, um único modo de salmodiar e de celebrar a missa e, além disso, declara ser o Missal obrigatório para todas as igrejas de rito latino, tanto na celebração solene, quanto na celebração privada da missa.
O MR tridentino tem a seguinte estrutura: se abre com a constituição apostólica de Pio V Quo primum tempore, ao que sucede as seguintes sessões: As rubricas gerais; o Ritus servandus; Os defeitos (falhas a se evitarem) durante a missa; As orações de preparação do padre para a missa; As orações de ação de graças para depois da missa; Outras orações que o padre poderia usar, dependendo da oportunidade; Elenco das letras dos domingos; Sobre os novilúnios; Sobre o ano e as suas partes; Esclarecimento sobre o calendário; Tabela perpétua (festas fixas); o Próprio do Tempo (do Advento até o Sábado Santo); o Ordinário da Missa; a segunda parte do Próprio do Tempo (do Domingo da Páscoa até o XXIV depois de Pentecostes); o Próprio dos Santos, começando pela vigília de Santo André (29 de novembro); o Comum dos Santos; o Aniversário da dedicação de uma igreja; as Missas votivas; a Missa para os esposos; as Orações para serem ditas ad Libtum pelo sacerdote; as Missas dos defuntos; Bênçãos diversas.
Já durante os trabalhos de impressão do MR de 1570 foram operadas modificações e correções nos textos eucológicos, nos cânticos, na terminologia e nas rubricas. Seguiram outras intervenções textuais na edição de 1571 e outras por obra de Clemente VIII († 1605), em 1604, e de Urbano VIII († 1644), em 1634. Entre o fim do séc. XVII e o início do séc. XVIII, a França conheceu um pulular de Missais. O retorno da França ao MR se deu graças ao trabalho do beneditino Dom Guéranger († 1875), abade de Solesmes. Novas intervenções foram feitas no MR tridentino: por Leão XIII († 1903), em 1884; por Pio X († 1914) – Bento XV († 1927), em julho de 1920, depois da promulgação do Código de Direito Canônico de 1917; e, finalmente, por João XXIII († 1963), em 1962, alguns meses antes da abertura do Concílio Vaticano II.
A constituição conciliar Sacrosanctum Concilium, com o objetivo de tornar possível a participação ativa, consciente e plena de todo o povo de Deus no Mistério Pascal de Cristo, celebrado nos ritos e nas preces (cf. SC 47-48), ordenou uma série de profundas modificações no Ordinário da Missa (cf. SC 50). Assim, a reforma litúrgica não criou outros livros, mas levou à perfeição os livros da Tradição antiga e recente (Missal, Breviário, Pontifical e Ritual Romanos). Os livros renovados apresentam-se: 1. Autenticamente romanos, porque recuperam todos os sacramentários romanos, e consequentemente as tradições urbanas e papais/episcopais da Antiguidade, tanto nas suas formas puras (Veronense, Gelasiano Vetus, Gregoriano/ Adrianeu), quanto nas suas formas mistas (síntese entre o Adrianeu/Suplemento e o Gelasiano-franco do VIII século [Gelasianum Vetus + Gregoriano de tipo “Paduense” + usos galicanos + usos monásticos]); recuperam e espelham a genialidade da sobriedade ritual, própria do Rito Romano; fazem voltar à luz o verdadeiro sujeito do rito cristão, o povo de Deus reunido em torno dos seus pastores, que celebra no Espírito Santo, como atesta o venerável Cânon Romano, para isso retomam toda a dimensão epiclética que se tinha perdido; retiram da obscuridade o seu objeto, o mistério pascal de Cristo, que, mencionado apenas duas vezes no Missal na sua forma tridentina, consta, agora, não menos de vinte e sete vezes; 2. Excepcionalmente tradicionais (de sempre), colhendo, desde as estruturas apresentadas pelas mais antigas fontes da liturgia (Didaqué, Justino…), de todos os tempos (orações recolhidas dos textos patrísticos, de textos pré-sacramentais [rolo de Ravena…], de sacramentais, de manuscritos e impressos); 3. Verdadeiramente “católicos”, porque enriquecidos por textos de praticamente todas as famílias litúrgicas ocidentais (ambrosiana, benevetano, galicana, celta, hispânica, monástica) e orientais (antioquena e alexandrina com todas as suas ramificações) e traduzidos em todas as línguas vivas espalhadas pelo mundo cristão.
Essa visão mais ampla nos permite perceber como o Espírito Santo concede ao povo de Deus uma admirável fidelidade na conservação do imutável depósito da fé, apesar da enorme variedade de orações e ritos (IGMR 9). Desse modo, esse breve excurso histórico nos faz saltar aos olhos o grande valor do “Ordinário da Missa” renovado pelo Concílio Vaticano II e registrado no livro de oração por excelência da Igreja, o MR, com a sua riqueza eucológica, adaptações, restituição da centralidade da assembleia, da sua participação, da centralidade do Mistério Pascal de Cristo, etc. O MR “repaginado” é o fruto maduro do Concílio Vaticano II porque evidencia a teologia litúrgica da Sacrosanctum Concilium, a eclesiologia da Lumen Gentium, a teologia da palavra de Deus da Dei verbum… a abertura a todos os povos do decreto Ad Gentes.
Não há nada mais falso do que promover uma oposição entre o Missal de Pio V e o Missal de Paulo VI. Assim, um passo atrás, recuperando algumas etapas da história, nos ajuda a compreender melhor o nó das questões problemáticas e apontar linhas de abertura que promovam uma verdadeira “reconciliação litúrgica”. É a partir do Missal Romano (lex orandi) que vemos o desenvolvimento orgânico da liturgia (lex credendi). Por isso, é o retorno “ad fontes” que nos ajuda a recuperar o sentido teológico da liturgia, pois desde sempre, somos celebrantes do mesmo Mistério, esquecido em algum tempo, mas plenamente recuperado pelo Concílio Vaticano II.
Comissão Episcopal para a Liturgia
Referências bibliográficas
BECKHAUSER, A. Os livros litúrgicos em vernáculo no Brasil: memória de complicado processo, in SILVA, J. Ariovaldo; SIVINSKI, M. (eds.). Liturgia, um direito do povo. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 64-95.
PAULO VI, Constituição Apostólica Missale Romanum, in Missal Romano. 3.ed. Brasilia: Ed. CNBB, 2023, p. 15-17.
PEREIRA, J. O Missal Romano: livro do povo de Deus em oração, in Revista de Liturgia, n. 289, jan./fev. 2022, p. 4-9.
SORCI, P. Il messale romano come strumento della tradizione celebrativa, in GIRAUDO, Cesare (ed.). Il messale romano: tradizione, traduzione, adattamento. Roma: Ed. Liturgiche, 2003, p. 37-78.